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Carta-Manifesto do II Encontro de Etnodiversidade: tecendo redes e formando alianças de Soure, Ilha


Carta-Manifesto do II Encontro de Etnodiversidade: tecendo redes e formando alianças de Soure, Ilha do Marajó - Pará

Entre os dias 30 de julho e 02 de agosto de 2019, foi realizado o II Encontro de Etnodiversidade: tecendo redes e formando alianças, organizado pelos discentes e professores do Curso de Etnodesenvolvimento, com o apoio de entidades e lideranças comunitárias dos povos e comunidades tradicionais da região do arquipélago do Marajó, Salgado, Tocantina e Baixo Xingu.

Reuniram-se nesse espaço-tempo do Campus da Universidade Federal do Pará, localizado no município de Soure, na Ilha do Marajó (Pará), representantes de diferentes pertenças de povos e comunidades tradicionais, como extrativistas, quilombolas, pescadores, pescadoras, agricultores e agricultoras, indígenas, comunidade acadêmica; Defensoria Pública da União e representantes de movimentos sociais com o objetivo de criar uma rede de etnodesenvolvimento por meio de trocas de saberes e promoção de alianças e entrelaçamento de demandas e ameaças historicamente vivenciadas por estes grupos.

Nós, povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, estamos aqui em Soure formando uma aliança para enfrentar os velhos desafios malignos que desprezam e roubam nossos bem viveres e nossos locais de vida. Nossos antepassados, torturados e mortos na luta pela defesa dos nossos modos de vida e dos nossos deuses e encantados que povoam nossos territórios, fortalecem e amparam nossa ampla aliança e guiam nossos próximos passos neste caminho difícil.

Por eles, conhecemos muito bem estes caminhos: são 519 anos do maior genocídio da história da humanidade imposto aos nossos antepassados nas Américas e na África, desde a invasão dos estrangeiros do norte que em nossos territórios desembarcam até os dias atuais com o tal do desenvolvimento sustentável charlatão e o crescimento a qualquer custo que apenas sustenta a expansão do latifúndio improdutivo, do agronegócio venenoso e dos monstruosos empreendimentos e megaprojetos assassinos, como petrolíferas, barragens de rejeitos e mineradoras, hidrelétricas, ferrovias, portos, dragagem e derrocagem, desmatamentos, entre outros.

Outros, que padecem da ganância e do egoísmo do homem branco, parecem esquecer que a cada terra roubada, a cada árvore derrubada, a cada rio escavado, a cada peixe atormentado, a água maltratada e o ar roubado libertam maldições para todos. Nós sabemos que temos a responsabilidade de cuidar dos nossos territórios contra a cobiça de vocês. Fazemos isso por amor aos nossos territórios que florescem a maior biodiversidade do mundo e estamos evitando que um dia nos falte o que comer e respirar e só reste cegueira, dinheiro e ódio. O nosso futuro é ancestral.

Durante quatro dias, tecemos pautas comuns em questões relacionadas a meio-ambiente, saúde, educação diferenciada, direitos humanos e etnodesenvolvimento. Os problemas identificados são muito antigos e todos ligados à imposição de um modelo de “desenvolvimento” que se intitula “sustentável”, e se configura como grande ameaça à manutenção dos nossos modos de vida, tais como:

  • A imposição de um modelo de educação antidemocrático, eurocêntrico, precário em infraestrutura, transporte e na oferta de vagas em todos os níveis (do maternal ao ensino superior), que geralmente não respeita nossas línguas, nossas formas próprias de aprender e ensinar, nossos conhecimentos, nossas crenças, modos de vida tradicionais e que não oferecem alimentos suficientes e saudáveis aos estudantes e contrários aos hábitos culturais da comunidade;

  • A imposição de um modelo de saúde ocidental desumano que desvaloriza e não inclui nossos saberes nos tratamentos médicos, na nossa forma e direito de nascer, com a oferta de serviços precários e insuficientes de profissionais e de distribuição de medicamentos;

  • O roubo de nossas plantas e animais e do nosso conhecimento tradicional associado por meio da biopirataria;

  • A implantação de lixões a céu aberto próximos ou em nossos territórios;

  • O fechamento de acessos por grandes propriedades privadas (cercas e pistolagem) que impedem nossa circulação aos locais sagrados e áreas importantes para nossa reprodução social, cultural e econômica;

  • A poluição dos nossos rios, desmatamento de nossas florestas, morte e escassez dos nossos pescados e animais com a implantação de megaempreendimentos.

No entanto, no contexto político atual, estes problemas antigos ganham requintes de crueldade gerando múltiplos retrocessos:

  • A tentativa de desmoralizar e destruir o Fundo Amazônia;

  • A mercantilização da natureza com a flexibilização dos licenciamentos ambientais e compensações ambientais divergentes;

  • O avanço ainda mais voraz do agronegócio, hidronegócio, latifúndios, pesca predatória industrial, das madeireiras, mineradoras e garimpo sobre nossos territórios;

  • A liberação em massa de agrotóxicos proibidos em diversos países do mundo;

  • O fechamento de escolas e de postos de saúde;

  • A suspensão da demarcação de nossos territórios;

  • As ameaças à nossa vida, como defensores dos direitos humanos e da natureza;

  • O sucateamento das instituições públicas (Defensoria Pública, INCRA, FUNAI, IBAMA, Universidades, etc.)

Devido a estas situações suprimirem nossos direitos humanos fundamentais explícitos na Declaração Universal dos Direitos Humanos e específicos expressos na Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais, além de outros direitos fundamentais e tratados internacionais ratificados pelo Brasil, os povos e comunidades tradicionais presentes neste encontro decidiram criar uma Rede de Etnodesenvolvimento onde alianças foram discutidas em torno de uma agenda programática de ações que será divulgada em momento oportuno.

Demandamos e propomos ações que garantam a nossa permanência nos territórios:

  1. Fortalecimento e implantação de Educação diferenciada nas escolas da rede pública com i) a formulação e reformulação de Projetos Políticos Pedagógicos (PPP) nas escolas com nomenclaturas específicas por pertenças (PPP Quilombola, Pesca, Extrativista, etc.) que considerem os conhecimentos tradicionais, o calendário ecológico e cultural das comunidades e as línguas; ii) a elaboração de materiais didáticos condizentes com a nossa realidade, iii) formação continuada dos profissionais e iv) participação efetiva na gestão escolar com direito à escolha da direção, com vistas a garantir a autonomia na gestão dos territórios tradicionais;

  1. Criação de uma secretaria voltada para as relações étnico-raciais, ação já discutida nas conferências de educação;

  1. Criação de mecanismos para enfrentamento das dificuldades de acesso e permanência na Educação Básica (educação infantil e ensino fundamental I e II) e conclusão do Ensino Médio como caminho para acesso dos povos e comunidades tradicionais ao Ensino Superior;

  1. Manutenção do Curso de Etnodesenvolvimento da UFPA no Campus de Soure e expansão do curso para outros Campi da UFPA;

  1. Monitoramento e ações de controle social dos Editais de Concursos Públicos para inclusão dos egressos do Curso de Etnodesenvolvimento;

  1. Incentivos para o fortalecimento do sistema de conhecimento vinculado ao uso de plantas medicinais, às práticas culturais para a prevenção, tratamento e cura de doenças físicas e espirituais, bem como o atendimento e acompanhamento das mulheres gestantes, a fim de garantir a perpetuação dos conhecimentos tradicionais para as próximas gerações;

  1. Articulação e fortalecimento da representatividade nos conselhos de saúde no nível local, regional e nacional para encaminhamento de demandascomo a falta de agentes de saúde e endemias e melhoria na atuação desses agentes, limitação do atendimento dos hospitais regionais (Tocantina, Marajó e nordeste paraense), dos postos de saúde precários, criação de estratégias de saúde da família de povos e comunidades tradicionais, ausência de profissionais de saúde, humanização do atendimento, etc;

  1. Ações e fortalecimento das políticas em nível local para garantia da soberania alimentar, a partir da saúde ambiental dos territórios com produção de alimentos orgânicos, investimentos na agricultura familiar e pesca sustentável, articulados com as secretarias de educação e Conselho de Alimentação Escolar (CAE) para fornecimento da alimentação escolar;

  1. Criação e participação do comitê tradicional e popular de bacias hidrográficas com apoio das instituições de pesquisa;

  1. Fortalecimento dos processos associados à criação e gestão das Reservas Extrativistas e Reservas de Desenvolvimento Sustentável, dos acordos de pesca como caminho para o empoderamento/protagonismo das comunidades para conservação ambiental;

  1. Garantia da realização das consultas prévias livres e informadas com as comunidades para tratar dos empreendimentos com os povos e comunidades tradicionais, de acordo com a OIT 169;

  1. Realização de encontros em conjunto com os órgãos competentes em parceria com a UFPA, agentes de etnodesenvolvimento e lideranças para o monitoramento dos efeitos dos megaempreendimentos;

  1. Implantação da Defensoria Pública da União no município de Salvaterra e demais regionais;

  1. Exigência de que as multas aplicadas por crimes ambientais sejam transferidas para regularização fundiária dos territórios tradicionais;

  1. Criação de núcleos de ação socioambiental articulados em uma rede horizontal de etnodesenvolvimento dos povos e comunidades tradicionais para realização de ações mais concretas e encontros periódicos para fortalecer as práticas e saberes tradicionais.

Aprovada por unanimidade em plenária pública no dia 02 de agosto de 2019, esta carta-manifesto é abaixo assinada pelos presentes.

Soure, 02 de agosto de 2019.

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